O Sótão...

fevereiro 23, 2022

 E antes que eu me esqueça, o sótão!

Mais um pouco de Histórias da Casa de Cultura Jonas&Pilar Ano 10. Essa casa faz parte da paisagem desde os tempos de povoado. Foi residência, depois escola (se não me falha a memória, o Atheneu Sul Baiano) e recebia estudantes de vilas das redondezas. Foi importantíssima para a formação de muita gente. Depois da escola foi novamente residência e, antes que o inexorável tempo agisse, retornou a trilha da formação educacional, da arte e cultura, transformando-se num Centro Cultural a partir de 2012. A pessoa jurídica, no entanto, chama-se Instituto Macuco Jequitibá, o que nos permite concorrer a projetos de financiamentos para manutenção das atividades.

Mas eu quero mesmo é falar do sótão que essa casa teve. É, teve, porque uns “maluvidos” não registraram que o sótão era intocável. Não tinha nada a ver com a obra de criação do nosso espaço multiuso para espetáculos.

Eu não sei o que acontecia nesse sótão quando era escola, mas quando residência, um sótão é um lugar mágico, acima da casa, que permite um certo recolhimento da azáfama de uma família.

Era um lindo refúgio, todo em madeira, e com tantos momentos a contar. Conheci um desses momentos que foi quando acessei pela primeira vez a escadinha íngreme para conversar com Marcelo Ganem nesse sótão – refúgio e ponto de criação, refúgio de discos e livros. Ali foi uns dos lugares que serviu para engendrarmos o histórico Serra do Jequitibá – o primeiro disco de Marcelo Ganem.

- Com licença dona Pilar, seo Jonas, vou entrar para falar com Marcelo no sótão!

Ia logo nada. Muitas vezes, fui convidado para sentar-me à mesa para tomar um café da tarde com o rigor que se faz no interior: fartura. E foi aí que ganhei intimidade com dona Pilar e seo Jonas (um homem inteligentíssimo, falante, cheio de opiniões). E quando me formei jornalista  seo Jonas pareceu aumentar o gosto pela conversa contando histórias em sua cadeira de balanço.

Mas voltemos ao sótão. O mágico lugar era um espaço com um cômodo mais amplo, depois outro espaço menor e alguns labirintos que se faziam com o rebaixamento do telhado.

Agora a parte triste: este sótão não existe mais. Desde o início das atividades artísticas, nós destinamos ao sótão a nobre função de guardar figurinos dos espetáculos. Em dez anos ficamos abarrotados, isto é, o sótão não cabia mais tanta roupa. E este sótão com alma de artista, agora, virou memória.

Inadvertidamente, quando decidimos ampliar a sala de espetáculos de Casa de Cultura Jonas&Pilar transformando-a num espaço multiuso, os operários meteram o sótão abaixo e desmancharam-no. Confesso que quando vi a bagaceira pelo Whatsapp ainda gritei: o sótão não! Mas já era tarde demais! O sótão foi abaixo sufocando no desmonte toda sua história, segredos.

Quando os fatos são observados pela perspectiva do tempo, passamos a imaginar coisas. Por exemplo: talvez, por causa desse sótão é que Marcelo Ganem desenvolveu seu talento para a música. Ele ficava por ali, dedilhando o violão. Muitas vezes, para poucos, fazia um sarau, experimentando suas composições e misturando o repertório com os nomes consagrados, dentre eles, Milton, Chico... Era o tempo da ditadura e da escassez – sonhávamos poder comprar uma calça Lee de contrabando – e havia uma certa melancolia. Tudo tinha um cunho político, principalmente aquelas músicas consagradas. Mas um detalhe: no momento em que havia uma conversa, uma dispersão, Marcelo dava uma nota rasgada no violão e encerrava o sarau. O sótão ficava em silêncio e os poucos privilegiados que ali estavam voltavam pra casa*.

E porque o sótão foi desmanchado pelos “maluvidos”, vamos construir outro espaço para depositar nossos figurinos e cenários. Pena que será no rés do chão. Pena que, apesar da finalidade artística do depósito, dificilmente o novo local de nosso acervo terá a atmosfera do velho sótão – o distanciamento da azáfama, o recolhimento necessário para a criação artística (Gideon Rosa).

 

 

 

 

*Mas esses momentos eram muito raros. Os saraus aconteciam com frequência maior era no jardim de Eurico. Naquele tempo quase não havia casas ali. E à noite era só quietude.

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