Repercussões sociais de Coração das Trevas – Por que falar sobre eugenia?
junho 08, 2020
(O texto contém spoilers da obra!)
Coração das Trevas é um livro do princípio do século XX, ano de 1902, que trás reflexões atemporais e muitos dos conflitos apresentados na obra continuam atuais precisando apenas de contextualização. Um bom exemplo disso está no filme “Apocalypse Now” (1979), que faz uma releitura da obra no contexto da Guerra do Vietnã.
Loucura, racismo, exploração, colonização, morte, fome, não necessariamente nessa ordem, são alguns dos temas mais importantes que podem ser debatidos a partir da leitura de Coração das Trevas. Outras temáticas não ficam tão óbvias, mas ainda assim estão intrínsecas aos conflitos apresentados, como a que decidi abordar nesse texto.
Eugenia
Tenho acompanhado notícias e palestras nesses tempos de quarentena, na intenção de me manter atualizada do cenário político e social atual e me surpreendi com o recente retorno de discussões sobre eugenia. Tive a oportunidade de ver/ouvir algumas personalidades falando sobre, como foi o caso do historiador Leandro Karnal numa conversa com o biólogo Átila Iamarino.
“Karnal aponta a eugenia do mundo como uma grande distopia – a busca por um ideal padrão tal qual no Admirável Mundo Novo do Huxley.” Fonte
Mas por que falar sobre EUGENIA?
Pra quem não sabe ou não está familiarizado com o assunto, o termo “eugenia” surgiu no final do século XIX, mais precisamente em 1883, cunhado por Francis Galton, e significa “bem nascido”. Com o avanço das descobertas genéticas e influenciada pela obra de Charles Darwin “A Origem das Espécies” (1859), essa teoria visa criar um ser humano geneticamente superior, com menor propensão a doenças e deficiências de qualquer tipo, seja mental ou física.
Na teoria pode até parecer bonito, mas na prática é algo muito cruel. A tentativa de melhoramento de populações humanas é na verdade uma prática que existe desde há muito tempo. Um exemplo de nação que a praticava isso está na Grécia antiga, em Esparta. Quem já leu sobre ou até mesmo assistiu ao filme “300” (2006), sabe que naquele tempo era comum que se eliminassem os bebês que nasciam com irregularidades físicas, pois só eram desejados os que estivessem em perfeitas condições para o labor e para a guerra, a fim de que não se dispensassem esforços ou recursos de qualquer tipo com essas crianças que nasciam “fora do padrão”. Dessa forma, a eugenia em Esparta consistia em matar os recém-nascidos doentes ou deficientes.
O olhar mais atento percebe que essa noção nunca se extinguiu de fato na civilização. O auge disso sendo legitimado e colocado em prática se deu com a ascensão do nazismo quando do Holocausto, que foi o genocídio de milhões judeus, pessoas que eram consideradas inferiores e impuras, sempre comparados a ratos, seres que nem mereciam viver. A gente se pergunta: como isso pode ter sido possível? Como uma população pôde não se importar com que tipo de atrocidades milhões de seres humanos estavam sendo submetidos? Como podem ter se tornado tão insensíveis?
Hitler e o ideal ariano |
A ideia de superioridade da raça é o que fomenta o racismo
O tempo em que se passa a história de Coração das Trevas era ainda um período de escravidão presente no mundo e por mais que o termo “eugenia” ainda não tivesse sido cunhado àquela altura, sua ideologia já estava presente nas práticas colonizadoras em todo o mundo há séculos.
O cientificismo racista animalizou esses povos pra justificar suas dominações seculares.
O cientificismo racista animalizou esses povos pra justificar suas dominações seculares.
“O Evolucionismo social, a ciência padrão mais aceita à época, era uma das peças fundamentais do empreendimento colonizador porque alegava que as populações nativas, não europeias, da África, da América ou da Ásia eram apenas povos que ainda não tinham evoluído tanto quanto os europeus brancos e cristãos.” Trecho do artigo “Colonização e Loucura” por Christian Ingo Lenz Dunker
Portanto o que Joseph Conrad experienciou no Congo foi conviver com aqueles homens brancos que de fato se viam como superiores aos nativos, e eles tinham um aval para se sentirem superiores, e este aval estava na cultura, na sociedade, nas práticas de colonização feitas há séculos. Aqueles brancos jamais se sentiriam iguais aos congoleses.
Pela forma como ele escreve, notamos que Conrad aparenta ter um pensamento diferenciado, afinal ele experimentou outras culturas, viveu na Ásia, passou em vários lugares do mundo, dessa forma ele já teria uma ideia de que poderia encontrar uma vivência muito diferente de sua cultura originária. Mas ainda mantinha certa ingenuidade: ele não esperava encontrar uma situação tão absurda e bizarra ali, que era ainda o resquício pós-escravidão, o pensamento de que aquelas pessoas seriam humanos primitivos, inferiores, ou mesmo sub-humanos e selvagens. O mínimo que a Companhia fazia para tentar mostrar algum tipo de civilidade eram aqueles contratos de trabalho. Mas se os contratados adoecessem ou tivessem acidentes sérios, eram simplesmente abandonados sem nenhum tipo de cuidado, deixados para morrer, como pudemos ler na primeira parte.
Inclusive creio que a observação passiva de Joseph Conrad, não criticando o que acontecia ali e apenas relatando os fatos, pode ser um dos motivos utilizados pelos acadêmicos africanos nos estudos pós-colonialistas para acusar o livro de racismo. No livro observamos que os chamados “peregrinos” não se sentem iguais. Eles não dão valor algum à vida de qualquer nativo. Conrad em alguns trechos gera a reflexão sobre a humanidade dos congoleses. A cultura deles é tão fora da realidade daqueles europeus que é considerada como selvagem e até mesmo demoníaca, o que justificaria a animalização dessas pessoas.
Trazendo a discussão sobre eugenia para o Brasil, talvez alguns ainda não saibam que medidas eugênicas foram amplamente utilizadas aqui quando o governo brasileiro permitiu a imigração de europeus de diversas nacionalidades. Com a proibição do trafico atlântico de escravizados (Lei Eusébio de Queirós, 4 de setembro de 1850) e o advento da abolição da escravatura (Lei Áurea, 13 de maio de 1888), o Brasil precisava de novos trabalhadores para suas lavouras de café, portanto a imigração de europeus era vista com bons olhos pelo governo e demais instituições públicas e personalidades da época. O Brasil, tão generoso, abriu suas portas para esses brancos que precisavam de trabalho e muitas vezes estariam até fugindo de conflitos armados.
Fica o questionamento: para que trazer trabalhadores de outros países se no nosso já tínhamos os que foram libertados do cativeiro da escravidão? Por que não contratá-los como livres trabalhadores, recebendo remuneração pelo trabalho prestado?
Na verdade, a intenção do governo nunca foi a inserção dessas pessoas recém-libertas na sociedade, mas sim o amplo embranquecimento da população. O planejamento era de que, em algumas décadas, a população negra já teria sido reduzida consideravelmente.
Quadro “Redenção de Cam”, de Modesto Brocos, 1895, óleo sobre tela.
A mãe agradece aos céus que sua filha tenha encontrado um homem branco para "clarear" sua família.
A mãe agradece aos céus que sua filha tenha encontrado um homem branco para "clarear" sua família.
Nós não podemos negar a persistência das ideias eugenistas baseadas em raça na atualidade. Muitas vezes de forma bem mais sutil, tão sutil e normalizada que mal se faz notada pra quem não tem esclarecimento, e é o que chamamos de racismo estrutural. Esse esclarecimento foi se desenvolvendo com mais força principalmente nas últimas décadas, com a maior democratização dos estudos, com o empoderamento dessas populações, o que trouxe a possibilidade de que se pudesse falar e a finalmente ser ouvido, falarem sobre as suas condições de vida, sua cultura, a violência à qual é infligida, a exclusão social e sofrimento.
Muitas vezes pode-se ter a sensação de que o racismo hoje está pior, mas na verdade ele está sendo exposto, falado e filmado. Um marco que registra o aumento da visibilidade da discussão sobre racismo e suas consequências sociais aqui no Brasil está no disco dos Racionais MC’s, “Sobrevivendo ao Inferno”, que ganhou o prêmio da MTV de melhor disco do ano de 1997.
Sobrevivendo no Inferno é o segundo álbum de estúdio do grupo brasileiro de rap Racionais MC's,
lançado pelo selo da gravadora Cosa Nostra em dezembro de 1997.
É considerado o álbum mais importante do rap brasileiro.
lançado pelo selo da gravadora Cosa Nostra em dezembro de 1997.
É considerado o álbum mais importante do rap brasileiro.
Uma ideia eugênica que é replicada por representantes públicos atualmente é que o Estado deveria esterilizar os pobres. Esterilização compulsória. Segundo o pensamento desses representantes e de pessoas que pensam como eles, já que essas populações não contribuem para a sociedade, essa seria a solução para os problemas como o da saúde pública, os hospitais lotados, educação sucateada, violência urbana. O Estado não tem que dar condições pra que a pessoa aprenda a se prevenir, tenha uma vida digna, tenha emprego, saneamento básico, educação de qualidade. Não, a solução é castrar pessoas, como se fossem animais.
“É eugenia cada vez que legitimamos vida, morte, ou investimentos em seres humanos a partir de premissas que dividem seres humanos com características que se supõe puramente biológicas.” Fonte
O ponto principal sobre esse tema da eugenia é que a vida humana se torna descartável. Pra quem acredita nesses “ideais”, a vida dos que não se encaixam no padrão não é importante. Pobres, pretos, índios, ciganos, mendigos, os ditos drogados, enfim, todo tipo de existência que está fora do padrão “aceitável” pelo consenso da sociedade deve estar à margem e por fim eliminado.
É a falta de empatia completa. A vontade de que as pessoas desapareçam para melhorar a sociedade é doentia. O medo e o ódio são alimentos para pensamentos como esse, hipócritas e ignorantes.
Como podem ver, esse tema gera uma grande discussão filosófica, moral e ética. Sinta-se à vontade pra refletir conosco!
Segue AQUI o link para a live em que conversamos sobre eugenia com a doutora em educação e professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia do Instituto de Biologia da UNICAMP, Ana Arnt. Vale a pena conferir! A entrevista começa aos 10 minutos.
Publicado por Renata Figueiredo
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